O dia que te falei adeus

Larissa Nicolosi
24 min readMar 8, 2023

A morte da minha melhor amiga mudou absolutamente tudo na minha vida. Mudou cada célula do meu ser.

Parece que toda vez eu falo isso, mas tudo que vou escrever é tão intenso, tão íntimo e tão doloroso. Começo e paro de produzir esse texto várias vezes. Mas eu preciso escrever, finalmente, isso tudo que meu coração passou.

Quando ela morreu, comecei a escrever sobre ela e sua trajetória terrena, numa busca incessante de me aliviar da dor e de nunca deixar que ela fosse esquecida, mas sim, conhecida. Foi tão bonito, falava dela, contava sobre ao mundo. Com isso, várias pessoas se sentiram contempladas, puderam gostar dela mesmo após sua partida. É como se as palavras mantivessem uma chama acesa no coração de cada um.

Dessa vez, me sinto pronta para dar mais um passo: falar sobre o processo de luto, os primeiros dias, a hora da notícia, o depois. Quero que quem tenha passado por isso se sinta abraçado e consiga acolher os próprios sentimentos, porque eu sei que o luto faz com que pareçamos alheios ao mundo, faz com que sintamos que estamos incomodando ou que não entendamos aquilo que está no peito. Vamos lá.

Nos primeiros dias, cortei um pedacinho da minha mecha colorida, que eu tinha pintado na última vez que nos vimos, e guardei num pacotinho. Guardei, inclusive, o pote que tinha usado para pintar o cabelo dela, ainda sujo de roxo, programa comum nosso, fizemos cerca de 15 dias antes de ela falecer.

Salvei todos os áudios, todas as fotos, todos os vídeos, todas as possibilidades de lembrança, mas acho que só agora eu entendi o que realmente “lembrar” significa pra mim.

Sabe a diferença entre lembrança e memória? A primeira dói, a segunda permite. É pela memória dela que continuei perpetuando palavras, que quis usar esse instrumento como algo do bem, mesmo que a lembrança do acontecido fosse dolorosa (e ainda é). É como se a lembrança fosse grito desesperado e a memória fosse canção.

Minha ideia aqui é contar meu processo de luto desde o seu início até agora. As recaídas, os percalços, as dores, os alívios.

Esse é o relato mais doloroso da minha vida, mas eu preciso escrever e contar.

Hoje faremos o duplo exercício de lidar com lembrança e memória. Me acompanhe.

O DIA

O dia estava tão estranho. Uma dor, uma agonia, parecia que meu coração estava sufocado. Não havia nada que justificasse isso, eu estava tão estressada naquela manhã. O sono eu pensava que era por estar muito frio; era junho, seu inverno impiedoso e seu céu de brigadeiro (que não ornava com a estação) estavam lá.

Tive aula de fotografia, pois era quarta-feira. O professor levou até aquecedor para a sala. Estávamos discutindo sobre o trabalho de final de semestre, que consistia num álbum em que aplicávamos as técnicas que havíamos aprendido. Eu iria usar a Ana como modelo, claro. Afinal, fazíamos tudo juntas. Além disso, o cabelo bem roxo dela contrastava com a pele. Estava tudo combinado. A Ana queria ir naquele dia fazer o ensaio, mas eu tinha médico à tarde e não ia dar tempo de eu passar no Largo da Ordem vê-la.

“Tá bom, então depois a gente se fala”.

E eu nunca mais ouvi aquela voz.

Ela foi levar o recém-comprado iPhone no conserto, numa loja do Largo. Sabia andar por lá, não era um labirinto nem nada, o problema foi o destino.

Minha melhor amiga morreu em decorrência de um atropelamento no Largo da Ordem, em Curitiba, seis dias depois do impacto. Foi durante uma perseguição policial por causa de maconha. Não quero apontar culpados, me descabelar por quem estava errado. A questão é que, num dia de tempo limpo e frio pacas, ela estava atravessando a Treze de Maio com a Trajano Reis, com sinal aberto para pedestre, e uma moto fugitiva não a viu.

Era 15:20, mais ou menos, do dia 8 de junho de 2016 e eu recebi uma ligação do celular dela, mas não era ela quem falava. A pessoa só me informava sobre o acidente, dizia que era para eu avisar a mãe dela e me dizia que não sabia se era grave, pois ela tinha ficado uns minutos acordada.

Depois disso, foram horas sem notícia, sem saber ao certo para qual hospital ela foi e o que tinha acontecido. Na minha cabeça, ela devia ter quebrado um braço ou uma perna, uns arranhões aqui e ali. Na minha cabeça, em poucas horas ela teria alta. Mas não.

A única notícia que consegui foi horas depois lendo num portal de notícias (por razões óbvias, não era hora de eu ficar enchendo o saco dos pais dela atrás de informação), uma das matérias tinha até um vídeo anexado com a Ana na ambulância, machucada, respirando com ajuda de aparelho. Bem doído de ver, de extremo mau gosto de se colocar. A matéria dizia que ela tinha sido arremessada, que houve traumatismo craniano e ferimento torácico. Em resumo, estado gravíssimo. Mais tarde, a prima da Ana me passou mais informações, junto com a melhor amiga da mãe da Ana. As notícias eram péssimas. Ela havia perfurado o baço, pois as costelas haviam quebrado, havia perdido muito sangue, bateu a cabeça, teve uma enorme pressão no tórax, ainda mais que ela era pequena de estatura, o baque foi em cheio. Tínhamos que esperar um milagre. Cada hora era uma tortura, mas dava esperança, afinal, era uma hora a mais de resistência.

OS SEIS DIAS

Acho que era o 4º ou 5º andar do hospital, não lembro mais. Lembro de implorar para os meus pais para ir lá no outro dia bem cedo, pois à noite no dia anterior não tinha como. Chegando lá, no andar da UTI, uma capela que deve ter ouvido tanto choro e desespero ao ponto de as cortinas quase chorarem e, com certeza, Cristo abraçaria cada um daqueles desesperados. Vi os pais dela, vi as tias, a melhor amiga da mãe dela. Na hora da visita, gentilmente me deixaram entrar. Lembro dos batimentos dela aumentarem ao ouvir as vozes minha e da mãe dela. Que agonia aqueles vários fios e ela em coma induzido, machucada, as escoriações. Os cabelos roxos, tão sedosos, raspados para fazer a craniectomia descompressiva. Jurei que ia raspar também quando ela acordasse, ao mesmo tempo que lembrava que, dias antes, ela me falava que tinha vontade de deixar o cabelo bem baixinho. Tinha planos para ajudar a cuidar dela no quarto do hospital, na reabilitação, na cura dos ossos quebrados, em qualquer coisa. Imaginava passando as tardes com ela, depois da faculdade, o dia que ela sairia do hospital. Mas aquela realidade era tão difícil.

Não lembro se no segundo ou terceiro dia, fui buscar os bichinhos dela no apartamento que ela morava para deixar com o avô dela. Quando entrei, as coisas dela estavam naquele estado que deixamos quando temos certeza que, ao voltarmos, vamos arrumar. Mas ela não voltou.

As roupas em cima da cama, os tênis pelo chão do quarto, aqueles objetos que você pega na pressa e não dá tempo de guardar.

Em um dos dias minha madrinha largou tudo e foi me buscar no hospital. Ela faz isso sempre que eu preciso, faz 14 anos. Ela me falava sobre a gravidade da situação e eu não queria acreditar, mas eu sabia.

Nos seis dias de internamento, não tinha céu azul, mas sim frio e tempo cinza, o que tornava tudo ainda mais deprimente. Eu saía da aula e ia lá. Estava no primeiro período da faculdade e ela também. Eu fazia Jornalismo na UFPR e ela Enfermagem na PUCPR.

Experimentei uma sensação nos primeiros dois dias que não havia tido antes: ralar a área abaixo dos olhos de tanto chorar e limpar. No primeiro dia que fui para a aula após o atropelamento, lembro de umas amigas me trazendo lencinho e água no lab 3.

Quando vi a sigla GSC 3, fui atrás de descobrir o que era. Minha cabeça busca a forma mais racional possível de lidar com situações difíceis ou traumáticas, vou falar mais adiante. Mas, no caso aqui, eu queria entender e saber o que era cada sigla, com o objetivo de levar melhor, de encarar melhor. GSC é a Escala de Coma de Glasgow, usada para avaliar o nível de consciência dos pacientes, muito usada em casos de lesões encefálicas. A Escala vai de 1 a 15, sendo que, abaixo de 3, é gravíssimo.

O dela era 3, estado de coma.

Para confirmação de morte encefálica, o score deve ser o mais baixo possível: 3.

Isso significa que o paciente está em coma não perceptivo, ou seja, não abre os olhos, não consegue falar e não se movimenta.

Morsch Telemedicina

Politrauma. TCE grave. HSD. HEP. Fui atrás de todos esses termos e aí sim eu tive mais noção ainda que o negócio era feio.

Os dias permaneceram assim. Cada vez que meu celular se conectava no WI-FI, tinha medo de receber alguma mensagem informando o pior.

QUANDO ELA FOI EMBORA

No sexto dia de internamento, acordei diferente. Finalmente um solzinho queria aparecer e aquilo me pareceu esperança. Foi a primeira noite que eu tinha dormido por completo. Naquele dia, minha mãe me pediu para não ir ao hospital, mas para ir para casa descansar. Antes de ir, fui até a Praça Tiradentes, coloquei o nome da Ana na Missa do meio-dia e fui aos pés de cada santo pedir misericórdia. São vários santos na Catedral. Fui um por um, pedi a salvação, seguido de um educado “masquesejafeitaavontadedeDeus” mas torcendo para a vontade Dele ser igual a minha.

Cheguei em casa quase 14h. Meus avós estavam lá para tomar café. Minha mãe quis me mostrar um vídeo no computador sobre uma paciente de coma que, em resumo, reviveu como uma Fênix. Víamos o vídeo até que, de repente, minha pressão caiu e tudo ficou escuro, como se tivessem puxado minha alma ou um pedaço de algo. Sentei.

Um pouco mais tarde, minha mãe recebeu uma ligação e foi para o quarto atender. Andou para lá e para cá mais um pouco.

Quando ela colocou a mão no meu joelho, eu já tinha entendido.

Minha vontade era de quebrar tudo. Não parecia certo. Tinha pedido tanto, implorado. E a família dela? Como iriam ficar? Como assim ela sofre um acidente e morre sem culpa de nada? Ficava inconformada com a minha família parada na hora do meu desespero, como se meu cérebro pensasse: “vamos lá salvá-la! não fiquem aí parados. Vamos pegar o carro e ir até o hospital salvá-la.”

Nesse meio tempo, meu pai veio na velocidade do som para casa e minha madrinha também.

Minha mãe tinha pedido para eu ir para casa porque ela sabia que estava cada vez mais grave e os exames de morte cerebral indicavam positivo.

Vivo parando e voltando a escrever esse texto. Há uma justificativa: eu preciso focar em selecionar as memórias cuidadosamente, pois, quando alguém que você ama morre, as lembranças do que vocês viveram facilmente se confundem com as que você gostaria de ter vivido; a linha é muito tênue entre essas duas situações. Eu lembro, penso, reflito e, aí sim, escrevo.

Voltemos ao dia.

São vários os exames de morte cerebral, afinal, você precisa ter certeza que não há mais atividade no cérebro. São estímulos como, por exemplo, reflexo pupilar (de resposta à luz), induzir tosse, testes de apneia e, claro, o Eletroencefalograma por último, para dar a confirmação final. Mesmo sabendo que tudo era cientificamente embasado e que havia uma certeza que naquele corpo não havia mais a energia da minha melhor amiga, ainda assim não fazia sentido aquela notícia.

A reação que você tem ao perder alguém amado é muito animalesca. Acho que é assim que posso definir. Com a Ana eu tinha relação de proteção muito forte, então eu sentia que tinha falhado. No momento que soube que ela morreu, tive dor, medo, tristeza, raiva e revolta. Consigo dar nome aos sentimentos agora.

Tive dor por saber o quão machucada ela estava. Tive medo porque sabia que os pais dela sofreriam muito e eu não queria vê-los sofrendo, pois os amava. Tive tristeza porque, ora, como não ter? Raiva porque tiraram minha melhor amiga de mim, a minha amiga mais próxima. Revolta porque foi um crime.

Depois, soube que ela morreu na mesma hora que passei mal, naquele trecho que contei há poucos parágrafos. Foi aí que eu senti um misticismo também. Como se fôssemos conectadas, como se fosse algo tão forte que, ao morrer, era como se algo em mim tivesse morrido junto. A sensação é exatamente como se tivesse saído algo de mim naquela hora que passei mal.

Minha madrinha conduziu a situação quando chegou, me fez comer bolo de fubá e eu fui medicada. Horas depois, mais uma dose. No velório, mais uma dose. Passei o final da tarde e o começo da noite respondendo nossos amigos e tive que fazer um recado também, porque eu fazia relatórios diários de como ela estava. Foram duas postagens, uma informando sobre a morte e outra sobre o local de velório. Parecia que meus dedos rasgavam ao escrever aquelas palavras, não parecia verdade. O perfil dela, ao escrever “Ana” surgia como se fosse de alguém vivo, agora é só um memorial. Via o nome dela sendo marcado e não conseguia acreditar. Escrevia e sangrava, parecia.

O amor da minha vida desencarnou.

A melhor parte de mim virou meu anjinho.

Por favor, dêem um pouco de privacidade a mim e a família dela. Rezem pra que a nossa Aninha vá em paz e na luz.

Eu posto as informações necessárias no perfil dela e aqui.

Obrigada

O velório da Ana Carolina Menon acontecerá na capela da luz, próximo ao cemitério municipal. Será a partir das 3:30 da manhã.

O enterro vai ser no cemitério água verde às 16h. — com Ana Carolina Menon.

Lembro que me irritava responder as perguntas, eu queria sofrer no meu canto, mas não dava, tinha muita coisa para passar ainda.

Eu tenho despersonalização, um transtorno psicológico que faz com que eu “desligue” em situações intensas (seja de alegria ou de estresse, doido, né?). Eu não desmaio, só começo a agir no automático e é como se meu cérebro se preservasse de demonstrar emoções condizentes a situação. É como se eu fosse telespectadora da minha própria vida, como se corpo e alma tivessem uma separação visível e distinta, eu vejo a separação, eu sinto essa separação latente em mim. Em vários momentos dessa situação, despersonalizei e agi como um robô. No velório e nos dias seguintes, principalmente. Eu dissociava, depois voltava por alguns minutos, o cérebro sentia exaustão e eu dissociava de novo.

“Outra experiência comum é o medo de dano cerebral irreversível. Um sintoma que costuma estar associado é um sentido de tempo subjetivamente alterado (i.e., rápido ou lento demais), bem como dificuldade subjetiva em recordar vividamente memórias passadas e considerá-las pessoais e emocionais. Sintomas somáticos vagos, como pressão na cabeça, formigamento ou atordoamento, não são incomuns.” Dr. Gabriel Lopes

E o dia passou assim. Não dormi, pois queria chegar junto com ela na Capela da Luz. Dissociada e sem sentir, escolhi a roupa preta que gostaria de ir, peguei um potinho de glitter e coloquei no casaco para homenageá-la. Não fui tão bem agasalhada, foi um dos dias mais frios de 2016.

DESPEDIDA

Meu pai levou eu e minha mãe até a Capela da Luz, no bairro São Francisco. Saímos próximo das 2:45 porque insisti que queria chegar junto com a Ana. Lembro de deitar no banco de trás e ficar olhando as luzes do Centro, aquele silêncio, todo mundo dormindo e a gente ali, indo viver aquilo. Eu ainda não acreditava.

Quando chegamos, a funerária tinha recém-estacionado. Entramos na capela em que ela seria velada, o corpo ainda não tinha sido colocado. Era tão frio. Ver aquela pedra/mesa centralizada e sem caixão me dava um nó no estômago. Ainda não acreditava. Cumprimentei primos e a madrinha da Ana e lembro de sentar e esperar trazê-la. Vi meu pai indo até o carro e imaginei que ele iria ajudar a levar o caixão, então minha forma de se preparar para aquilo foi fechar o olho e esperar para ver só quando já estivesse posicionado e aberto. Lembro do barulho de arrastar a urna de dentro do carro, nunca mais vou esquecer aquele som. Abri os olhos quando ela estava em cima da pedra, cheguei perto tão rápido, olhei e, ainda assim, não acreditava. Não chorei, parei e fiquei olhando. Ela era ela, eu sabia que era, mesmo estando bem diferente dos dias normais. Poderia dar explicações a vocês sobre os fundamentos post mortem, mas acho que já imaginam. Ela estava devidamente embalsamada, mas a funerária não cuidou tão bem da aparência dela, na minha opinião. Digo isso porque, agora que entendo como funcionam os trâmites e o cuidado fúnebre, sei que o serviço não foi executado tão bem. Ela fez cirurgias, incluindo a craniectomia descompressiva, logo, teve os cabelos raspados e pontos na cabeça. Sabendo dessas lesões e de que os pontos não estavam colados, mas sim costurados, a funerária não teve o cuidado de enfaixar sua cabeça, então a enviou da forma que estava. A maquiagem no rosto também não foi devidamente espalhada e arrumada.

O pai dela tentava cobrir a cabeça com os crisântemos, mas as flores de um caixão são contadas. Agora que sei disso. Dessa forma, pedi para a minha mãe me ajudar a levantar um pouco a Ana e enrolei o lenço que estava no meu pescoço na cabeça dela. Espalhei a maquiagem que estava acumulada. Arrumei os dedos da mão quebrada. “Descansa”, eu pensei.

Eu acho que esse foi um dos maiores atos de amor que eu fiz na minha vida. Eu sinto um amor tão grande dentro de mim quando lembro e escrevo isso a vocês. Não quero me vangloriar, mas eu senti tanto amor ao fazer aquilo, eu tinha que fazer. Não senti medo, receio de mexer num corpo frio, nem impedimento. É triste se imaginar alguém vendo a cena, mas é amor. O amor também pode ter isso. Eu sentia meu coração tão cheio de amor por ela ao ponto de querer colocá-la num berço, como se ela estivesse dormindo. Eu queria cuidar, era um amor tão grande que meu peito parecia que não ia aguentar. Era um amor tão grande, tão grande, tão grande…

Parece que foi um sonho (pesadelo?) quando relembro. Parece que nunca aconteceu. Tenho flashes, ideias de sentimentos, mas parece um filme. É só agora que consigo pensar firmemente no dia, antes meu cérebro não deixava, como se fosse uma forma de eu não sofrer.

Eu lembro que falava com ela como se ela estivesse dormindo. Chorei pouco, falei muito. Falava dos meus planos com ela e como iríamos fazer agora que ela era “invisível”, mas que iríamos dar um jeito, afinal, tínhamos várias coisas marcadas naquela semana, não dava para ela simplesmente ir embora. Lembro de falar: “aí nós vamos no Peppers e você vai comigo, do meu lado, eu sei que você vai, vai tocar as músicas que a gente gosta. Não mudou nada, eu só não consigo te ver, não vou te abandonar, vou levar você”. E, ao falar tudo isso, jurava que ela entendia e concordava. Eu sei que era um delírio, me sentia delirando.

Lembro da hora que perguntaram se alguém queria fazer um discurso e eu fiz, mas não lembro o que falei, só lembro que disse tudo que estava em meu coração. Não saí do lado dela, não para ser guardiã, mas porque eu precisava viver aquilo, minha cabeça precisava entender aquela situação por inteiro, ver, sentir, ouvir, presenciar. O pacote completo. O pouco que conseguiram me tirar de perto do corpo no velório me fazia voltar imediatamente do lado dela porque eu precisava ficar com ela, assim como eu ficava em vida por tantos anos. Depois, entendi também que era um reflexo de proteção.

A hora de fechar o caixão foi desesperadora, como se estivessem tirando ela de mim de novo. Acho que foi o primeiro momento em que eu realmente tive uma crise de choro depois de tantas horas.

Fomos para o Cemitério do Água Verde, onde ela foi enterrada. Parecia tudo tão absurdo, como se eu estivesse tendo um pesadelo. Parecia que a qualquer momento eu acordaria. Chegamos no túmulo, os mais próximos tiveram um momento em volta do caixão, aproveitei e dei um último beijo na testa dela, coloquei uma florzinha para ela levar (não sei quem me deu aquela rosa azul, mas se você estiver lendo isso, muito obrigada). Antes de ela ser colocada na sepultura, depositei aquela glitter que estava no meu bolso dentro do túmulo, para que o caixão repousasse em cima. Era algo que ela iria gostar, então eu fiz. Era o que ela queria.

Enquanto isso, How deep is your love? ecoava na minha cabeça como uma pergunta para o meu sentimento. E eu sabia que era tão profundo que, a partir daquele dia, eu sofreria muito por conta disso.

Fiquei até o último tijolo ser colocado, até ver que ela estava segura.

Fomos embora e eu dormi por 16h seguidas.

Everything is blue
Everything is blue
Everything is blue
Everything is blue

O DEPOIS

Nos primeiros dias eu ignorava totalmente o que tinha acontecido. 5 dias depois já tinha voltado a ir para a aula normalmente, mandava mensagens para a Ana e não me importava se ela não respondia, continuava agindo como se ela só estivesse offline. Eu jurava que ia encontrá-la na rua, então não me preocupava.

Via meninas de cabelo roxo na rua e me assustava, ficava procurando ela no meio da multidão.

Comecei a escrever sobre ela nas redes sociais, não me conformava que ela não iria mais conhecer pessoas e que o mundo não teria mais a honra de sua presença, então, já que ela não podia mais ir até os outros, fazia os outros irem até ela, conhecendo-a através das minhas palavras. Viralizou, muitas pessoas gostavam do que liam, sentiam por não a conhecê-la. Teve um post que vários marcaram seus respectivos melhores amigos dizendo que os amavam, aí eu vi que estava no caminho certo. Era isso que eu queria: não o sofrimento, mas despertar amor. Essa série de textos durou muitos anos, até que um dia eu parei de escrever sobre isso. Não porque ela não deve mais ser lembrada, mas porque acho que nosso trabalho tem ciclos, e ali se findou o meu com esse tipo de texto. Eu cumpri minha missão, plantei uma sementinha que virou uma flor roxa. Sinceramente, eu não escrevo se não sinto que devo fazê-lo, se as palavras são salvação, preciso ser honesta com elas assim como elas são ao definir o que sinto.

Após o primeiro mês, percebi que eu fazia sempre caminhos que me levavam ao fatídico local do acidente, como se eu precisasse passar por lá, como se houvesse ainda alguma coisa que pudesse ser feita pra impedir toda a tragédia. Saía da faculdade, descia na Reitoria e ia andando até o lugar do acidente; ficava uns minutos olhando e vinha embora pra casa, ia ouvindo Selvagens a Procura da Lei e Zimbra no fone. Várias vezes fazia a data de nascimento dela com uma estrela e uma cruz com a partida no poste que fica na esquina do atropelamento. A chuva lavava, eu fazia de novo. Parava, ficava olhando, esperava, ia embora.

Tive dezenas de sonhos lúcidos, tenho certeza que foram experiências sobrenaturais, por mais que meu ceticismo seja gritante em muitas situações. Um dia ela, teoricamente, me levou no lugar em que estava morando. A veia jornalística me fez perguntar como era morrer, como foi sentir. E ela falou: “Ficou tudo escuro, foi isso.”. Depois, me falou que a avó tinha a recebido e que deram um gato para ela, me mostrou o novo pet. Meses depois, uma medium que nem me conhecia retratou que ela havia sido recepcionada pela avó e que deram um bichinho para ela “sossegar". Não falei nada, só sorri. Meses depois, assistindo o “Nosso Lar", me apavorei ao ver que o lugar do filme era parecidissimo com o que passeei nos sonhos. Foram tantos sonhos lúcidos, cheguei a criar um Tumblr juntando todos os textos sobre eles.

Agora, raramente a encontro em sonhos. A última vez foi há alguns meses. Ela queria me mostrar uma série de fatos que comprovam que ela tinha que ir embora. Ficava me falando: “eu tinha que ir". Eu sei, Ana, eu acredito que tinha. No dia do acidente, ela se despediu com abraço e beijo de todos do setor do trabalho da mãe dela. Me fez uma declaração linda de melhor amiga dias antes. Era como se ela já soubesse. Um mês antes, me mandou um áudio refletindo “se ela não estivesse aqui". Eu a repreendi. Ela já sabia. Deus sabia.

Inconformada sem saber direito o que tinha acontecido e sem entender como os motoqueiros não a enxergaram, fui em todos os estabelecimentos daquela esquina para fazer quase uma “investigação” sobre o caso. Colhi depoimentos, perguntei, questionei. Era unânime: todos concordavam que os motoqueiros não a viram. Falaram dos escassos minutos que ela ficou acordada, da fatídica ligação, de tudo. Mas pelo menos supria um pouco daquela racionalmente que falei anteriormente.

Embasei meu luto em entendê-lo. Cada um faz de um jeito, eu preferi assim, senão teria decaído e nunca mais levantado (e tudo bem, essa também pode ser uma forma de lidar). Ao visitá-la no Cemitério, meu maior inimigo e terror de infância, comecei a apreciar os espaços. No início, tinha pavor de ir, mas precisava, tinha que levar flores, limpar, deixar tudo bonitinho para ela. Assim como eu ia no cruzamento do acidente, teve épocas que visitava o túmulo com frequência, afinal, eu sabia que a encontraria lá de alguma forma. Que o físico estava ali, que era certeza que estava ali, mesmo que eu não visse. Ficava lá sentada ao lado dela, conversava, pensava, pouquíssimas vezes chorava. Pouco depois, ia embora. Ficava pensando quando seria a minha vez.

(Curiosidade: Assim surgiu minha fascinação por cemitérios, o estudo de cultura da morte e o meu livro-reportagem Morte e Vida Curitiba, meu xodó, o responsável por me fazer reviver da dor do luto. Obrigada, Ana, Zeca, Clarissa, Val…)

Pois é, jurava que minha hora estava chegando. Algo tipo aquele filme Premonição, sabe? Sentia como se, ao ter negado o convite da Ana de ir ao Centro, eu tivesse fugido do meu destino. Hoje sei que as possibilidades eram completamente diferentes. Mas achava que a morte viria atrás de mim. Acho que, ao sentar ao lado dela na lápide, era como se estivesse esperando. No começo, levava fitas e velas azuis e roxas para simbolizar nós duas naquele túmulo. Um sinal de superação foi levar apenas roxas, pois eu não estava morta.

No primeiro ano, me achava morta. A dissociação me fazia parecer invisível, já que grande parte do meu dia era esquecida. Uma música do The XX fala: “I don"t have to leave anymore" e eu entendia o leave como live, aí achava que super fazia sentido, pois me achava uma menina morta-viva andando na cidade. Perambulava e me sentia invisível. Não falava com tantas pessoas sobre isso, fiquei extremamente desconfiada para fazer amizades, além de saber que a morte constrange, então falava com poucos sobre o que sentia. Chegou num momento que, por mais que estudasse, não conseguia entender em qual fase do luto estava. Parecia que tinha horas que todas se misturavam.

Queriam que eu melhorasse logo, mas não tem um tempo mínimo e máximo. Fazia menos de um ano, tão pouco. Quem mais exigia minha melhora eram os estranhos, os mais próximos não me pressionavam. Meus pais e meus amigos me ajudaram muito. Meu ex-namorado falava que a morte era assim mesmo, que eu não a entendia, mas eu a entendia e a sentia muito, era por isso que sofria. Não é porque a morte é natural que você vá ignorá-la. Sentir menos ou não demonstrar sensibilidade não é sinal de superioridade.

Depois de quase um ano comecei a fazer terapia. Tinha tido uma experiência pouco agradável nas primeiras semanas, quando uma primeira profissional falou: “você sabe que ela não volta, né?”. Óbvio que eu sabia. Não é assim que funciona. Depois, me encontrei, continuei com a mesma terapeuta por anos, pessoa que fez a diferença na superação do luto e no andamento da minha vida.

Até a terapia “fazer efeito", continuava me vendo como fantasma, esperando chegar o dia que eu pagaria por ter deixado a Ana ir sozinha. Não gostava de me apegar ou firmar relações justamente por isso, porque achava que não ia durar. Depois, passei para a fase que, com os poucos que era apegada, tinha um medo aterrorizante de perdê-los. Não queria deixá-los sozinhos, sofria com qualquer possibilidade ruim que existisse. Sofria sem que nada tivesse acontecido. Foi depois de muito tratamento que eu entendi que não posso controlar e nem impedir nada que não esteja ao meu alcance, que não posso viver em prol disso, senão não se vive, na verdade.

Guardava os áudios, fotos e vídeos como quem guardava um tesouro. Nos primeiros dias, escrevia em folhas coloridas os nossos momentos juntas, com medo de esquecê-los. Tentava guardar cada lembrança de forma tão perpétua, além do que meus limites humanos podiam. Aí não dava mais, eu precisava tomar uma decisão, principalmente enquanto as terapias avançavam e o tempo seguia. Não podia mais andar como se fosse invisível pelo simples fato de que eu não era. Era um sofrimento vivido em seu íntimo e uma espera terrível pelo que achava que me pertencia. Não era o que ela queria.

Foi aí que precisei permitir deixar a lembrança virar memória.

Eu a deixei descansar.

Não quer dizer que a ame menos, que sofra menos com a sua partida ou que não faça diferença. Mas precisei deixá-la ir. Deixá-la continuar seu caminho, se existir um depois, ou, simplesmente, dar a ela a paz que a morte pede. Tentar juntar cada grão das nossas lembranças não vai me trazer mais do que ter vivido todas com ela já me trouxe. Eu vivi, que sorte, né? As contei as outros que, mesmo dessa forma indireta, tiveram oportunidade de conhecê-la.

Isso não aconteceu no primeiro ano, nem no segundo, nem no terceiro. Foi depois, foi acontecendo e está acontecendo. Todo dia solto um pouco mais da sua mão para que ela viva a eternidade para sempre no meu coração, porque amor é isso.

Esse ano faz 7 anos que ela se foi e talvez eu não me lembre das mesmas coisas que lembrava em 2016. Mas lembro do que ela me fazia sentir e do grau de proximidade que tínhamos, além de lembrar da importância que ela tem. Isso me vale mais do que lembrar quantas vezes comemos numa lanchonete, caminhamos na rua ou ouvimos Paramore. Eu não lembro todos os dias que ri com ela, só sei que ri. Isso tá ótimo.

Meu Deus, quantas vezes fui e voltei nesse texto. Eu escrevo quando sinto. Agora mesmo estava arrumando minha mala para viajar e senti que deveria escrever. Vamos continuar.

Me revoltava porque ela morreu muito nova. Com 18 anos a gente ainda pode ser tanta coisa! Nós nos conhecemos com 12, a vi crescer, amadurecer, amar, chorar, rir. Não queria ver morrer também, não é justo, ela ainda tinha tanta coisa. Hoje eu entendo que ela tinha que ir, mas às vezes ainda me incomoda ver os anos passando e ela ter eternamente 18. Não a queria parada no tempo.

Tive várias recaídas nesses anos. Superar um luto não quer dizer que você não vá mais chorar, que não doa, que uma hora a ferida feche. Não fecha. A diferença é que o tempo te faz acostumar com uma nova rotina e te força a encará-la, você transforma os sentimentos e reconfigura o cérebro. Leva uns sustos vez ou outra quando vê algo que lembre a pessoa que faleceu, quando vê alguém parecido, quando faz algo que só vocês faziam e pensa: “caramba, queria que estivesse aqui". Esse último caso me pegava com frequência, deixei de fazer muita coisa por só fazer sentido com ela. Com o bendito tempo, ressignifiquei. Por exemplo, a mala que estou arrumando é para o show do Paramore, que ela iria amar curtir. Vou fazer isso por mim e por ela, assim como outras situações e conquistas: na minha formatura, fiz questão de discursar para os ausentes e homenageá-la. Levantei aquele canudo em honra dela. Tirei CNH por ela também. Tanta coisa por mim e por ela. Acho que vai ser assim sempre.

Lembro da campanha Anjos da Ana que fizemos para o Hospital Erasto Gaertner em 2019. Arrecadamos brinquedos e livros para a ala pediátrica. Era o sonho da Ana trabalhar lá, já que havia se curado ali mesmo quando era criança. A campanha foi um sucesso, arrecadamos mais de 500 itens e fizemos a alegria dos pequenos. Isso encheu nosso coração de esperança e um dever de missão cumprida. Quero fazer de novo. Se ela pode ver alguma coisa das TVs do céu, espero que tenha visto tudo isso e ficado feliz.

Tenho o nome dela tatuado no pulso em árabe, todo mundo pensa que é um rabisco. Mas a maior marca está dentro de mim. Como falei, talvez não tanto no meu cérebro, já que memória não é meu forte, mas meu coração é bem firminho para lembrar do tanto que a amo. Me vejo daqui 60 anos lembrando da minha melhor amiga da adolescência.

Você chora, ri, lembra, imagina como seria se a pessoa ainda existisse. A mente faz com que todas as possibilidades existam, faz você achar graça de coisas que nem aconteceram, mas só de imaginar com quem já se foi, vira festa. Me perguntam se ainda seríamos amigas e no começo essa pergunta me deixava muito brava. Hoje não me irrita, mas a resposta é: que diferença faz pensar nisso? Não invalida, não diminui e não alivia. Da mesma forma que pensar que ainda seríamos melhores amigas também não muda nada.

Hoje considero o luto como uma ferida que cuido bastante para formar a casquinha e ficar ali no canto dela. Falar da Ana não me faz mal, adoro contar da sua trajetória nesse mundo. Não me incomoda falar do acidente e das fases do luto também. Contudo, sei que preciso me policiar para saber quais sentimentos tenho que cultivar e quais não são bons para mim. A gente aprende a olhar muito para dentro quando passa por luto. Por exemplo, tento me entregar mais às novas amizades, me apegar mais, sei que tenho um bloqueio, mas tiro meu escudo quando vejo que são boas pessoas, como as do meu trabalho. Não deixo o medo ser maior do que os momentos bons que vamos ter juntos. Papo de coach, né? Me perdoem, mas fico fazendo essas coisas para superar os traumas antigos. Está funcionando bem. Tenho amigos maravilhosos, os quais sou bem apegada, e não temo. Protejo-os, mas sei que as coisas não são controláveis. Santa terapia e santo tempo, que dupla.

A Ana foi a chamada “dobra da vida", a minha dobra, o momento em que minha realidade e meu eu mudaram para sempre. Ela me transformou em vida e me renasceu com a sua morte. Ela faz com que eu queira ser melhor mesmo não estando aqui mais.

É por ela que escrevo tanto e amo tanto, que sei que pelo amor a gente vive eternamente.

Espero que você que passou por um luto tenha se sentido abraçado com esse texto. É uma ferida perpétua, mas acalenta com o tempo. Você se reconstrói, revive, retorna. A saudade te acompanha, mas saiba que o amor pelo outro é capaz de te movimentar muito. Respeite o seu tempo, os seus limites, a sua paciência. Se você não quer ir, não precisa. Vá quando se sentir confortável, mas lembre-se de não fazer do seu canto um santuário e que você tem mãos que podem te ajudar. Sei que tem coisas que só combinam com quem se foi e a única coisa de sanar sua dor é aquela pessoa, mas se permita, quando estiver pronto, a abrir a janela, sentir ar puro, fazer algo bom que nunca fez. Faça por você e por ela. Se apegue em algo: religião, amigos, família, hobbies, qualquer coisa que te faça bem e te apoie nesse período, principalmente no primeiro ano, faz toda a diferença uma rede de apoio. O tempo parece que se arrasta, mas ele vai em frente. Ande, não precisa ser rápido, vá no seu tempo, desde que nunca pare.

Aos enlutados, o meu mais sincero abraço e desejo de acalento no peito.

Aos que me ajudaram nesse período difícil, meu amor genuíno e grandioso.

Fiz um vídeo falando um pouco sobre tudo isso.

Ana e eu no aniversário dela de 18 anos, em 2016, poucos meses antes da sua partida.

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Larissa Nicolosi

Contando uma história sem perder a estribeira // Jornalista formada pela UFPR.